Ao tentarmos enumerar todos os títulos de Abai Qunanbayuly (1845-1904), (poeta, filósofo, compositor, educador, pensador, personalidade pública, fundador da literatura cazaque escrita, tradutor da literatura russa para o cazaque) nos sentimos impressionados com a universalidade de seu gênio criativo, o que, obviamente, o coloca entre os maiores expoentes artísticos de todo o mundo.
Durante sua vida, Abai praticamente não deixou o seu lugar de origem, a região de Semey, leste do Cazaquistão. Em outras palavras, o crescimento de Abai como pessoa, poeta e pensador ocorreu longe dos grandes centros culturais e intelectuais da época da Europa. Talvez isso tenha contribuído muito com o elemento de originalidade intelectual presente na obra de Abai, sua abordagem criativa que caminhava pelos limites da tradição de um sábio popular, de um pensador islâmico e de um intelectual moderno.
Abai foi capaz, como nenhum outro, de delinear, de forma brilhante, a imagem espiritual, cultural e moral de seu povo para as décadas seguintes. Além disso, formulou as bases da língua literária cazaque e apresentou como sua herança literária ideias surpreendentemente originais sobre o homem cazaque. Além disso, Abai foi o responsável pela abertura da cultura russa para os cazaques ao traduzir Pushkin, Lermontov e outros.
Segundo as palavras do escritor, poeta, acadêmico e ativista social cazaque Sabin Mukanov (1900-1973):
“Nem todos os gênios são poetas e nem todos os poetas são gênios. Abai foi tanto uma coisa, quanto outra”
O legado artístico de Abai é composto de uma série de versos, muitos dos quais ele próprio posteriormente musicou, traduções, vários poemas e a obra “O livro das palavras” a única em prosa. Em suas obras, Abai incorporou todas as faces da alma cazaque: seu lirismo, seus medos, sua busca por respostas, sua fé e seu imenso potencial criativo.
De acordo com Mukhtar Auezov (1897-1961), escritor, dramaturgo, cientista cazaque e autor do épico “O Caminho de Abai” (Romance no formato de epopéia, composto por 4 volumes e publicado entre os anos de 1942 e 1956):
“O caminho civilizatório para o povo cazaque é o Caminho de Abai. Abai é todo um planeta de espiritualidade universal, a expressão genial da sabedoria do povo cazaque, sua capacidade de ver, seu coração bondoso.”
Abai era um humanista, se preocupava com o empobrecimento em massa dos cazaques, com a ganância das lideranças. Em seus textos, Abai condenava a avareza dos ricos, incapazes sequer de ajudar seus próprios parentes em dificuldades, bem como a agressão contra o povo por parte daqueles que detinham o poder. Abai não dividia a humanidade em raças, religião ou convicções políticas, ele falava sobre o amor e o respeito entre as pessoas.
O autor conclamava a sociedade cazaque ao trabalho, vendo na vida ociosa de alguns de seus contemporâneos uma via escancarada para a pobreza e a miséria. Para tanto, Abai considerava fundamental para os cazaques o interesse por aprender, o conhecimento das ciências e o acesso à educação:
Essa é a necessidade da alma, a ambição por tudo ver, tudo saber, tudo aprender. Mas se esse interesse desaparecer, caso você não tenha mais vontade de tudo saber, ou pelo menos de saber uma parte, isso quer dizer que você deixou de existir como pessoa. Se você não tem ambição pelo conhecimento, significa que a sua alma já não é a de um homem, mas, sim, a de um animal. (Abai Qunanbayuly, “O livro das palavras”, Sétima palavra, Nova Alexandria, 2020.
Para Abai, uma alma ignorante não pode ser considerada viva, as palavras são vazias se não forem pensadas e apenas pela via do conhecimento uma pessoa pode se manter integralmente e socialmente viva. Por meio da educação, Abai ajudou jovens a se livrarem de seus vícios (brigas, mentiras, vanglória, preguiça e passatempos), além da ignorância e da grosseria, por mais humanidade, reflexão, bondade e verdade.
O primeiro presidente do Cazaquistão independente, Nursultan Nazarbayev, autor do livro “A Era da Independência”, traduzido para o português e publicado no Brasil em 2018, igualmente dedicou algumas palavras ao grande mestre Abai:
“… O mundo de Abai é nossa estrela-guia, que não nos deixará desviar do caminho. Nós a usamos para determinar nossos principais marcos. Abai já havia respondido a todas as perguntas mais difíceis e perturbadoras da alma há muito tempo. Ao ouvirmos os conselhos de Abai, encontramos a possibilidade de guiar o gigante nômade pelo caminho certo… (Palavra sobre Abai, 1995).
O poder da palavra de Abai, a palavra edificante, a palavra da reflexão e da dúvida chega ao Brasil, a primeira obra de literatura artística cazaque traduzida para o português, em homenagem aos 175 anos do nascimento do mestre das palavras, Abai Qunanbayuly.
Edelcio Americo
Doutor em Literatura e cultura russa pela USP
Tradutor-intérprete de russo
“…papel e caneta serão meu único consolo, passarei a anotar meus pensamentos. Se alguém encontrar neles uma palavra útil, que a copie ou memorize. Já se ninguém precisar das minhas palavras, elas permanecerão comigo.” (Abai, “O Livro das Palavras”, Nova Alexandria, 2020).