Num tempo em que a morte é resultado da ação bélica e/ou do descuido ambiental, faz-se necessário pensar e sensibilizar que os túmulos estão a receber corpos com marcas oriundas das ações de guerras, das violências que afetam corpos renegados, dos descuidos políticos e das ausências governamentais, das faltas de alimentos e do mais básico recurso de sobrevivência que é a água, símbolos de morte fruto de poder indiferente e incompetente; se as mortes não revelam que a leitura humanista malogrou, o humanismo está bem longe de ser bem ao humano.
O fracasso das atitudes humanas se reflete nas instituições. Os conselhos mundiais entram em dissensos por sobre destroços e misérias. Estados se bicam mesmo quando atitudes mortíferas encerram sonhos, destroem histórias, eliminam seres e apagam futuros. A atitudes humanitárias tardam e minguam, pois se encaixam a estruturas formais e institucionais cujo rosto é apenas um outro distante. A vida no palco de reunião e o viver em gabinete é o atraso e o fracasso numa retórica pouco frutífera, atrasada e limitada que falseia a esperança e tarda no atendimento emergencial da paz.
Emmanuel Lévinas, filósofo lituano-francês do século XX, tece sua teoria filosófica com uma perspectiva renovada, a filosofia primeira para ele é a ética – não a ontologia. Isso modifica muitíssimo o panorama da possível contribuição prática da filosofia para a humanidade. A ética que Lévinas apresenta é a alteridade, irrestrita e impagável responsabilidade por um rosto, uma face como ela é, sem nenhuma comparação nem qualquer limite, um outro que me implica ser cuidado tal como é.
Para Levinas o que é ético antecede o contexto e o ilumina. A ética da alteridade é a responsabilidade por esse outro que é um indivíduo à minha visão. Eu responsável, enquanto noção ética para aplicação, tem potencial de desviar a humanidade da estrada do caos [guerras, capitalismo selvagem, preconceitos, destruição ambiental etc.]. O rosto desse outro me impele a cuidar, não na perspectiva de simples acolhida ou alteridade benfeitora. É total e irrestrito um acolhimento do outro como o é ao me encontrar.
Talvez a mudança de sair da predominante lógica do ser – ontologia – para a dimensão ética possibilitaria uma filosofia mais pé no chão, próxima e útil tal como se pede nos pensamentos africanos antes da colonização que julga a inteligência ser obrigada à utilidade [que está na obra Filosofias africanas: uma introdução, de Simas e Lopes]. Mais que tornar a filosofia benefício útil, seria através dela que a humanidade poderia acrisolar seus pensamentos, perspectivas e anseios. Mais que obras ou discursos, a queda dos rostos ao chão que acolhe a morte é sinal do fracasso da ação daquilo que se leu e/ou escutou da sapiência ou das instituições.
Na lógica da alteridade, o centro é o outro. Emmanuel Lévinas (2005, p. 43) – na obra Entre nós – escreveu que “o amor é o eu satisfeito pelo tu, captando em outrem a justificação de seu ser”. Como esse amor pode permitir morte por tiro, fome ou escassez de recursos? Que humanismo é esse que vem sendo proferido em palanques em circunvizinhança a guerras, discriminações e indiferença? Quão humanos são de fato o cansaço e a liquidez contemporânea que me fazem insensível e sem sonho de paz?
Não me atrevo a definir a vida com palavras. Ao ler Lévinas, concebe-se que a palavra é limitada, nela estão muitos dizeres possíveis e, por tal, os discursos e as falas precisam mais do que som e concatenamento de ideias, é preciso coração. Não é simples relembrar o poder de sentir o coração. Eu responsável seria eu de coração. Quando a filosofia fala de amor não perde sua cientificidade, mais humana tende a tornar-se. O amor levinasiano não é teológico nem romântico, é aquele cuja tradição e etimologia não é representada na efemeridade que o termo assumiu na contemporaneidade. O rosto só é cuidado se o coração for impelido pela responsabilidade necessária. Ao ler de Drummond: “amar o perdido deixa confundido este coração”, podemos ter a noção desse outro que me é importante.
Em tempos de incertezas e extremos, Lévinas se apresenta com um aporte teórico cuja ética é igualmente difícil e possível. Na história do humanismo contemporâneo, a filosofia ética mais que a questionar está num papel operativo que apresenta perspectivas para o transformar. Eu responsável coaduna a teoria filosófica com o reconhecimento e sensibilidade da assimilação do fracasso dia após dia do projeto global de vida. Para humanizar, é preciso mais aproximar-se de rostos do que de palavras. Uma palavra não pode dizer dogmaticamente de algo total, o ser é muito mais que qualquer discurso.
Eis que essa ética responsável pelo rosto é dissonante do formalismo diplomático que atrasa e fracassa quando o terreno de sua escuta tanto distante da real morte está. Se a diplomacia permanecer no gabinete, a roupa do discurso é imagem da distância. O diplomático só corresponderá sua missão quando sua ação anteceder qualquer destruição. Aí a ética poderá facilitar, indagar e aperfeiçoar todo o contexto humano caso a opção seja continuar num mudo cujo imperativo existencial seja amar, eu responsável polo continuar a viver e sonhar.
*Douglas Felipe Gonçalves de Almeida é acadêmico, pesquisador e membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara – ABEFC.
Artigo publicado originalmente no site do Instituto Humanas da Unisinos.