Coluna: Pode a mulher muçulmana falar? – Por Francirosy Barbosa (USP)

Pode a mulher muçulmana falar?

Francirosy Campos Barbosa[1]

Elas são vossas vestimentas e vós sois delas (Alcorão 2,187)

 

O Pode a mulher muçulmana falar? É uma analogia com o texto de Gayatric Spivac “Pode o subalterno falar?”, pois quando se trata de olhar para as mulheres muçulmanas temos sempre uma visão distorcida dessas como sendo subalternas (subjugadas) e abjetas, para usar um termo de Judith Butler. É inconcebível, para alguns, que mulheres possam pertencer a um grupo religioso no qual a vestimenta, o cobrir-se faça parte da sua religiosidade e da sua escolha. A perspectiva de opressão se inverte neste caso, pois ao dizer que mulheres muçulmanas não devem se cobrir, estamos criando um discurso objetivado na nossa ótica “não islâmica” de corpo, sentidos, etc. Ao desejar/obrigar que o outro siga o nosso padrão cultural estamos excluindo-o do espaço público e silenciando a sua fala.

Com o exercício de 20 anos buscando ouvir mulheres e homens muçulmanos em comunidades islâmicas no Brasil, volto ao curso do Mundo Islâmico organizado pela FAMBRAS (Federação das Associações Muçulmanas do Brasil) em parceria com o Instituto Rio Branco de 4 a 8 de dezembro de 2017 para retomar outros pontos que dialoguem com as percepções de gênero em sociedades islâmicas. Como antropóloga, sei que as agendas femininas em países islâmicos são diferentes das agendas de mulheres muçulmanas brasileiras. Se não diferem na religião, diferem em conhecimento religioso e apropriação do mesmo para sua articulação dentro e fora da comunidade.

Há ainda no Brasil, um discurso recorrente de que toda mulher que usa hijab (lenço, véu islâmico) só pode ser árabe e/ou estrangeira. Algumas brasileiras muçulmanas ouvem constantemente: volte para o seu país! Isto só demonstra o desconhecimento sobre a realidade das comunidades islâmicas existentes no Brasil. O censo de 2010 apresenta o crescimento de todas as religiões, inclusive do Islam. De acordo com os dados levantados no censo o número de muçulmanos saltou de 8 mil para 35 mil muçulmanos, não querendo discutir a validade desses dados[2], penso ser necessário destacar que houve um crescimento maior de 200% da população islâmica no nosso país. Isto se deve em parte as reversões[3] à religião e aos processos migratórios, mas no período indicado (2000-10), certamente as reversões impulsionaram este número. O trágico atentado acontecido em 11 de Setembro de 2001 levou mais pessoas à Mesquita do que esperavam os próprios muçulmanos. É fato, que muitas pessoas curiosas em saber o que era o Islam acabaram conhecendo os ensinamentos da religião e se revertendo. No período contabilizávamos que a cada 10 revertidos, sete eram mulheres.

O crescimento da religião no nosso país não fez com a própria se tornasse mais conhecida, ainda continua sendo exótica e invisível no cenário brasileiro. Muitos não sabem, por exemplo, que a maior presença de muçulmanos está no continente asiático, seguido do africano, sendo os árabes a terceira população muçulmana. Embora seja a segunda religião que mais cresce no mundo é também a que mais vem sendo apresentada por estereótipos que denigrem a imagem dos fiéis.

Um dos temas mais polêmicos é o uso do véu, pois este é visto como uma forma de opressão do sexo feminino. O seu uso nada mais é que uma forma de ibadah (adoração) a Deus. Ibn Taymiyyah – disse: “Adoração (Al-‘Ibadah ) é obediência a Deus seguindo o que Ele ordenou nas línguas de Seus Mensageiros”. Há os ibadat (plural de ibadah) conhecido como os pilares do Islam, se a pessoa deixa de praticar um deles, como a oração, deixa de ser muçulmano. O uso do véu não é um pilar, caso a mulher deixe de usá-lo ela estará cometendo um pecado, mas não deixa de ser muçulmana. A mulher só deixa de ser muçulmana se negar que o véu é uma adoração obrigatória indicada por Deus. Esta é a regra aceita pela maioria dos muçulmanos, mas há quem discorde e continue achando que o véu é sim uma imposição e desnecessário. Neste quadro me refiro especificamente há algumas feministas islâmicas que veem o véu como algo que deveria ser abolido, por se tratar de um discurso patriarcal.

No Brasil, o que vemos acontecer é uma dificuldade por parte das revertidas de seguirem a recomendação, pois o preconceito em relação às mulheres de hijab chega a ser explícito quando esta vai procurar um trabalho ou pretende alcançar um lugar mais alto na carreira.  Entretanto, em países de maioria muçulmana, o véu é quase compulsório, muito natural que a menina passe a usá-lo a partir da primeira menstruação. No entanto sabemos que o véu é imposto em determinados grupos o que é contrário aos ensinamentos islâmicos.  “Não há compulsão na religião” (Alcorão 2, 256) isto serve para todos os aspectos da vida religiosa, na qual o fiel faz uso do livre arbítrio, inclusive para o uso da vestimenta islâmica.

Uma sociedade plural como a islâmica só pode ser minimamente entendida levando em consideração vários esforços de inteligibilidade como as propostas dos cursos Mundo Islâmico e dos cursos de Difusão que ministro na USP Ribeirão Preto[4], pois esses situam contextos que são construídos histórica e socialmente essas comunidades, dando formas a conteúdos muitas vezes não apreendidos pelos meios sociais/comunicacionais. O debate de gênero é um dos mais importantes, pois como e de que modo às mulheres muçulmanas se posicionam e são respeitas? Pode a mulher ter direitos? Como isso acontece em uma sociedade patriarcal? O que as diferem de mulheres não muçulmanas? É preciso trazer o contraponto também e buscar compreender como os homens são pensados diante de sua masculinidade. Qual é o seu papel e como eles são educados em uma sociedade na qual as mulheres têm direitos dados pela religião desde o século VII? A discussão sobre as categorias modéstia e honra se fazem necessárias, pois são elas que delineiam a fitra (natureza) desses indivíduos.

Cabe apresentar as percepções sobre gênero no Islam, a fim de desconstruir a ideia de mulher subjugada pelos ditames religiosos. Trata-se de apresentar outros contornos sobre ser mulher em sociedade islâmica, que varia em determinados contextos, não por causa da religião, mas sim, pela forma de inserção religiosa e contextos de maioria e minoria islâmica. Convém estabelecer nesta discussão os direitos delas quando se trata de casamento, questões de sexualidade, corpo, uso do hijab, trabalho e questões diversas que atravessam o universo feminino que é apresentado sempre de forma estereótipada. Este tem sido o esforço empreendido em minhas pesquisas e análises há duas décadas.

As sociedades islâmicas, como qualquer outra sociedade teve ou tem o machismo presente, entretanto, vem desconstruindo mecanismos de opressão em relação às mulheres e se reinventando no mundo moderno à luz das fontes escriturárias (Alcorão e a Sunnah) muito impulsionado pelas próprias mulheres que buscam conhecimento e são mobilizadas também por movimentos externos e internos como o próprio movimento feminista islâmico (importante deixar claro que esses movimentos não são homogêneos e nem tem as mesmas pautas reivindicatórias). Esses movimentos, não são necessariamente de agrado de muçulmanas, mas não deixam de provocar incômodos que a partir deles o lugar de fala passa a ser ocupado na tentativa de dizer, sobretudo, que elas não precisam ser “salvas”, como podemos verificar na atuação de Linda Sarsour, ativista americana de origem palestina. Muito embora reconheça a importância de movimentos provocativos como o feminismo islâmico, é necessário considerar que mulheres muçulmanas são plurais e tem outros interesses dentro e fora da comunidade.  Torna-se imperativo ouvir as mulheres muçulmanas, compreender suas agendas e (com)partilhar com elas o sonho de uma sociedade justa e igualitária para todos os cidadãos do mundo sejam esses muçulmanos e não muçulmanos. Promover o pensamento decolonial que restitui à mulher muçulmana o seu lugar de fala e de difusora de conhecimento torna-se imprescindível.

 

Referências:

ABU-LUGHOD, L.  Do muslim women really need saving? Anthropological relections on cultural relativism and its other. American Anthropologist, v.104. issue 3, p.783-790, 2002a.

BARBOSA, Francirosy Campos. Por entre os véus dos feminismos islâmicos. Rio de Janeiro, Revista Diáspora, 2017. In: http://www.revistadiaspora.org/2016/12/16/por-entre-os-veus-dos-feminismos-islamicos/

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

FERREIRA, Francirosy, C. B (org.) Olhares femininos sobre o Islã. São Paulo: Hucitec, 2010.

FERREIRA, Francirosy, C. B. Diálogos sobre o uso do véu (hijab) – EMPODERAMENTO, IDENTIDADE E RELIGIOSIDADE. Perspectivas, São Paulo, v. 43, p. 183-198, jan./jun. 2013

__________.  antropologiaeislam.com.br

__________ . Vozes do Islã. [Filme vídeo]. Produção do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP) e direção de Francirosy Campos Barbosa Ferreira. São Paulo, 2007. 25 min. color.

__________. Mulher e Islam – Seria o Islam misógino?https://www.youtube.com/watch?v=6_5F6LW1mco

SPIVAC, Gayatric. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

[1] Antropóloga, Academic Visitor, Middle East Center, Oxford University  sob supervisão do prof. Tariq Ramadan em 2016, docente do Departamento de Psicologia da FFCLRP/USP, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes, autora do livro: Performances Islâmicas em São Paulo: entre arabescos, luas e tâmaras. São Paulo: Edições Terceira Via, 2017; coordenadora do livro: Olhares femininos sobre o Islã: imagens, etnografias e metodologias. São Paulo: Hucitec, 2010. Email: francirosy@gmail.com

[2][2] A FAMBRAS, por exemplo, aponta que há no Brasil mais de 1 milhão de muçulmanos.

[3] Aqui uso a categoria nativa de pessoas que se expressam como revertido e não convertido, trazendo a ideia de retorno à religião. Cf (Barbosa, 2017).

[4] Cf antropologiaeislam.com.br

Profa. Dra. Francirosy Campos Barbosa

Pós doutora da Universidade de Oxford
Doutora em Antropologia
Docente do Departamento de Psicologia, FFCLRP, USP
Pesquisadora de Comunidades Muçulmanas em São Paulo
Sair da versão mobile