ALVOROÇO
Eu tenho em mim desertos
Que, pelas noites, se debruçam frios,
Como lâminas, a fatiar-me o peito.
E levo em mim agravos abertos
A endoidecer o poema de arrepios,
Como beijos que se dão no leito.
Eu trago em mim este abandono,
Uma orfandade feita de calafrios,
Um alvoroço a me revirar do avesso.
Carrego, enfim, o assombro emerso,
Que apaga estrelas e afunda navios,
Que, no infinito, transborda no verso.
ANDRAJOS
É primavera, tempo de se admirar tesouros sem preço,
Pelos caminhos da natureza, os mais belos adereços.
A mesma folha caída que no chão é tapete ou tropeço,
Nas hastes altas das ramas, é broto, é vida, recomeço.
Arrulham as aves, esvai-se a neblina, cantam as rosas,
A lua afina-se ao fim desta tarde pela planura formosa.
As lágrimas se ocultam pelas copas da rica vegetação,
A paixão aquieta-se, a paz supera na alma a afetação.
É primavera, tímida, silenciosa, qual borboleta em ação,
Sou eu a fazer versos dos meus andrajos em ebulição.
ARADO
A cada dia me descubro
Em alguém que desconheço:
Era falante, sou hoje calado,
Agora quieto, antes agitado,
Buscava encontrar o mundo,
No presente, dele me afasto,
Procurava incendiar a alma,
Atualmente, vou sossegado.
Não sou mais o que sonhei?
Não importa, estou vacinado.
Não vou ter o que esperei?
Pouco espero deste arado.
A vida é mesmo um achado!
Corria? Agora ando de frente.
Ansiava? Hoje alteio fulgente.
Os olhos fitos a te admirar,
A boca inteira para te beijar,
Um lume novo para exultar,
Que ainda caminho galante,
Relampeando versos ao ar,
E faço da vida um mirante,
Que me faz rir ou chorar,
Neste planeta inconstante,
Ondeio sem me fragmentar.